segunda-feira, 4 de agosto de 2008

MENOS É MAIS


Walden, do norte-americano Henry Thoreau (1817 - 1862), é um desses livros que se lê na adolescência e nos influencia pelo resto da vida. Publicado em 1854, conta em detalhes a experiência de dois anos, dois meses e dois dias vividos sozinho numa cabana no meio de uma floresta perto de Concord, Massachussetts. Thoreau queria provar - e conseguiu - que se pode viver, e bem, sem os confortos da civilização. Walden, ou A Vida no Mato, se tornou um dos livros mais conhecidos de não-ficção escritos em inglês, e seu autor um ídolo de sua geração, tanto nos Estados Unidos como na Europa.
Mais de 150 anos depois, os ecos da pregação de Henry Thoreau, resumida no bordão "simplificai, simplificai", ainda são ouvidos. Milhares de norte-americanos cansados do consumismo do American Way of Life se declararam "centenários": reduziram a 100 os objetos que fazem parte de suas vidas, descartando os demais por supérfluos. O movimento já chegou à Europa.
Não precisamos ser tão radicais, mas, pensando bem, todos nós, de classe média (alta, baixa, remediada), acabamos acumulando em nossas casas coisas que passamos anos sem usar: roupas, eletrodomésticos, bugigangas guardadas apenas porque algum dia poderemos precisar. Temos dezenas de CDs que não ouvimos, livros que apenas ocupam espaço na biblioteca. Com o passar dos anos, depois que os filhos saíram de casa, nos damos conta de que não precisamos morar em casas grandes, que dão trabalho e despesas com manutenção.
Nas creches, asilos e abrigos mantidos por instituições de caridade sempre há pessoas necessitadas das coisas que em nossas casas são apenas um estorvo. Vamos peneirar e mandar para elas o que não usamos?

Abaixo, uma divertida crônica de João Pereira Coutinho, colunista da Folha de S. Paulo que vive em Portugal, sobre o assunto.

Como chegar aos cem

Sim, sou um nostálgico da simplicidade. Tenho 5.000, 6.000 livros. Mas o meu sonho supremo era ter apenas dez ou vinte e fechar a contagem. Ah, como seria bom reunir "os livros da minha vida" numa única estante e deixar que o ruído do mundo, e das letras, passasse lá por fora. A biblioteca perfeita não se faz por adição; faz-se por subtração. Não me canso de o repetir.
Como tudo o resto, aliás: acumulamos centenas, milhares de objetos sem desígnio ou sentido. Quando seria possível viver com metade, ou metade da metade, ou metade da metade da metade. Só nos Estados Unidos, leio agora, existem milhares de "centenários": indivíduos que, cansados do excesso consumista, reduziram as suas vidas a cem objetos fundamentais. A moda espalhou-se por jornalistas do Reino Unido. Da Europa. De Portugal. Que fizeram a experiência e sobreviveram a ela.
E por que não? Sentado no sofá da sala, olho em volta e, saturado pela paisagem, começo a subtrair mentalmente. Ao fim de algumas horas, há mais espaço: físico, mental e até existencial. Não acreditam? Acreditem, leitores. E sigam-me, por favor.
Começo pelo quarto. Deixo ficar a cama (1); o jogo de lençóis (2); o cobertor para as noites geladas de Portugal (3); um candeeiro de leitura (4); os três volumes das cartas de Séneca a Lucílio, editados em inglês pela Loeb (7); uma chávena para o chá (8); um lápis para sublinhar ou comentar (9); caneta (10); bloco de notas (11); a fotografia que me acompanha quando desperto ou adormeço (12).
E roupa? Pouca, pouca. Três calças para o verão (15); três para o inverno (18); outro tanto de camisas (24); e de cuecas (30); e de meias (36); um "tweed" invernal (37), um casaco de linho para os dias mais quentes (38); gabardine para a chuva (39); sapatos (dois pares, 43); calções para nadar (44); uma gravata preta para funerais (45).
Na biblioteca, o despojamento é total. Fica a mesa, sim (46); a cadeira que foi do meu pai, e do pai do meu pai (47); o piano (48); o sofá das sestas e das festas (49); a estante (50); e, dentro da estante, por ordem cronológica, a Bíblia (51); a ética e a poética de Aristóteles (53); os Pensamentos de Marco Aurélio (54); as Confissões de Agostinho (55); Dante e a sua Comédia (56); os ensaios de Montaigne (57); a lírica, e só a lírica, de Camões (58); as obras de Shakespeare na edição recente, e excelente, da Royal Shakespeare Company (59); o Orgulho e Preconceito de Jane Austen (60); o Brás Cubas de Machado (61); os Maias de Eça (62); as quatro primeiras novelas satíricas de Evelyn Waugh (66); um volume de crônicas de Nelson Rodrigues (67); óculos para ler (68); o candeeiro para ler com óculos (69); e o laptop, para comentar tanta leitura e responder aos excelentíssimos leitores (70).
A música seria a grande sacrificada. Mas não abriria mão de Noël Coward a cantar velhos temas (71); e de Gershwin ao piano (72); e de Harry James ao trompete (73); e do My Fair Lady, na versão original (74). Ficaria também com uma ópera popular de Mozart, talvez Così Fan Tutte para os dias solares (75); e Bach para os dias chuvosos (76); e guardaria ainda um CD antigo e pirateado com um tema de Ennio Morricone que me enche sempre de felicidade e nostalgia (77). E, antes que seja tarde, o aparelho de som para que a casa não ficasse muda (78).
E antes que me acusem de higiene primitiva, haveria papel higiénico no banheiro (79), uma escova de dentes (80) com pasta a condizer (81); um pente (82); e sabão natural, melhor que todos os cremes (83). Ah, já esquecia: e uma toalha para me limpar (84)!
O que sobra? A cozinha, sim. Mas, não sendo eu homem moderno com talento para os tachos, dispensaria os ditos cujos. Ficaria o telefone para encomendar jantares (85) e a máquina do café para os terminar (86). E dois copos (88), e dois pratos (90), e duas facas (92), e dois garfos (94), e duas chávenas (96), e dois guardanapos de pano (98) - tudo isso para quando você, doce leitora, aqui viesse para jantar. E se pensam que faltam ainda dois objetos para chegar aos prometidos cem, pensem novamente: o jantar seria íntimo e à luz das velas. Duas, para ser mais claro (100).
João Pereira Coutinho, 32, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Ed. Quasi), publicado em Portugal, onde vive. Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.
E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.comSite: http://www.jpcoutinho.com








2 comentários:

Unknown disse...

Pô,sabe que estou terminando de ler Walden, uma nova edição, inspirado pelo filme "Na Natureza Selvagem", que recomendo muito. Netes dias de hoje, sufocados pelo consumo, a simplicidade, mais que uma opção filosófica, é uma necessidade. E faz bem, ao espírito e ao bolso. Bem lembrado, Clóvis. Abs. Ulisses.

Clovis Heberle disse...

Caro Ulisses,
vi Natureza Selvagem. Excelente filme pelo drama humano, o contexto social, as paisagens, a história - principalmente porque ela é real.
Um abraço