quarta-feira, 20 de julho de 2011

FÁBULA DE PORTO ALEGRE, A CIDADE SORRISO*


"A cidade tinha a graça de uma adolescente de boa estirpe. Atavia-se com simplicidade a cada despertar e a cada pôr-de-sol. Durante a jornada, misturavam-se as galas da natureza com a técnica do homem, em proporções harmoniosas.As noites ainda eram silenciosas e longas. A segurança não postulava aldrabas. Podia vagar-se  sem medo pelas ruas e podia meditar-se sem pressa na quietude dos gabinetes." 
Paulo Barbosa Lessa(1924-2008), advogado e professor de Direito, descrevendo a Porto Alegre da década de 1940


  A praça da Alfândega, com o portão central do cais do porto ao fundo


Porto Alegre cresceu e se tornou capital da Província de São Pedro por sua excelente localização:  era ponto de chegada e partida de quem navegava pelos cinco rios que desaguam no rio Guaíba, e por quem buscava a saída para o mar pelo porto de Rio Grande, na Lagoa dos Patos. 
No século 20, ferrovias e rodovias foram construídas, o Rio Grande do Sul se industrializou, a capital cresceu e se modernizou. Se tornou conhecida como Cidade Sorriso. Em seu porto atracavam navios vindos de todo mundo, e era possível embarcar num Ita  para o Rio de Janeiro ou para as capitais nordestinas.
Barcos subiam e desciam os rios Jacuí, Taquari, Caí,  Sinos e Gravataí com cargas de todos os tipos. Comprar laranjas, bergamotas e produtos da colônia na Doca das Frutas era tão costumeiro quanto percorrer o Mercado Público em busca de peixes, carnes e tantos outros produtos. Bem perto dali havia lojas, joalherias, bares, confeitarias e cinemas - Ópera, Imperial, Guarani,  Carlos Gomes, Cacique. Era uma festa. As garotas se produziam para percorrer a rua da Praia - o "footing" fazia parte dos hábitos dos portoalegrenses.
Os bondes interligavam o centro aos arrabaldes: Navegantes, São João, Floresta, Auxiliadora, Petrópolis, Partenon, Glória, Teresópolis, Menino Deus. Uma linha circular ia pela rua da Praia até o Gasômetro e voltava pela avenida Duque de Caxias. 
 No início da década de 70,  foi preciso optar. Extinguir os bondes e substituí-los por ônibus, movidos a óleo diesel? Preservar os prédios construídos nas útimas décadas ou botá-los abaixo para a construção de edifícios, transformando o Centro numa selva de concreto?
 Felizmente a população, os vereadores e os prefeitos não cederam às pressões dos espertalhões, dos especuladores imobiliários e de todos aqueles que só viam os seus interesses econômicos.
 A maior vitória do  espírito público ocorreu quando surgiu um projeto de proteção contra as cheias do Guaíba e evitar o que acontecera em 1941, quando as águas invadiram a parte baixa ao longo da zona portuária.  Fruto de uma mente megalomaníaca, pretendia a construção de um muro
de concreto com portões hermeticamente fecháveis ao longo da avenida Mauá.  Foram levantadas dúvidas sobre a eficácia do sistema - houve quem argumentasse com a velha e boa lei dos vasos comunicantes, pois se as águas subissem até as bordas do cais, entrariam também pelos canos de esgotos e pelo arroio Dilúvio para invadir o outro lado do muro. O argumento definitivo para a sua rejeição foi  de que o muro separaria definitivamente a cidade do seu rio. 
Daí para a frente, o bom senso prevaleceu. A navegação  fluvial passou a ser valorizada.  Velozes Aliscafos semelhantes aos que ligam Montevidéu a Buenos Aires substituíram os barcos a vapor para o transporte de passageiros entre Porto Alegre e Rio Grande, com escalas em todas as cidades do trajeto - Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, São Lourenço e Pelotas. 
Quanto ao muro: os recursos para a sua construção foram usados num projeto de canalização e tratamento dos esgotos cloacais, que  reduziram a poluição das águas do Guaíba. O arroio Dilúvio voltou a ter águas cristalinas, e  suas margens serviram para ciclovias. 
No verão, as belas praias do Guaíba eram uma opção para aqueles que não queriam ou não podiam ir até o Litoral.  O entardecer tinha um encanto especial com a urbanização de toda a orla do rio. O trecho do porto entre o portão central e a Usina do Gasômetro, transformado numa área de lazer,  ganhou bares, cinemas, teatros e restaurantes. 
 Quando as construtoras passaram a demolir os antigos casarões do centro histórico, houve um movimento pela sua preservação, com o apoio dos jornais, tevês e rádios.
Enquanto as outras capitais brasileiras extinguiam os bondes, tapando seus trilhos com asfalto para a passagem de carros e ônibus, a capital gaúcha não só manteve o serviço, como o integrou aos ônibus dos bairros mais distantes e dos municípios vizinhos. Em cada fim de linha dos bondes foram construídas estações de transbordo. Com a prioridade a um transporte coletivo de qualidade e baixo custo, que mais tarde incluiu um metrô para a região metropolitana, foram abandonados  projetos de viadutos e túneis destinados a facilitar o acesso de carros ao centro, já que isto só traria mais poluição, mais transtornos.  Em vez de carros, pedestres, bicicletas e bondes nas ruas. Porto Alegre se manteve como era até os anos 60: charmosa, limpa, agradável.
A Cidade Sorriso.  



* Esta fábula é uma homenagem a Leandro Telles, que por duas décadas lutou,  junto com alguns poucos sonhadores,  pela preservação dos prédios históricos da cidade. Obstinado, percorria as redações denunciando a destruição dos velhos casarões da área central para a construção de edifícios, mesmo que muitas vezes fosse recebido pelos jornalistas com indiferença e até com má vontade.
 Num dos episódios mais conhecidos de sua militância,  enfrentou pároco da capela do Bom Fim que anunciara a sua demolição.  Com o apoio dos moradores do bairro, o templo acabou sendo restaurado.
Hoje Leandro se dedica apenas ao seu estande no Brique da Redenção. 

4 comentários:

linuxman disse...

Eu adoro Porto Alegre, mas a cidade está mal administrada há tanto tempo que virou um inferno para os moradores. As pessoas em geral estão mal-humoradas e agressivas; o trânsito flue, mas todos acham que tem preferência; a polícia sumiu, fora nos arredores do shopping total, onde tem vários por quadra, depois das mortes ali ocorridas. E as margens do Guaíba? Tudo abandonado, sujo, as margens do Guaíba moribundas. Fico triste pela minha cidade. Ninguém mais sorri. Não somos mais alegres.

Clovis Heberle disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clovis Heberle disse...

Pois é, quando eu vim morar em Porto Alegre, em 1963, ela era a Cidade Sorriso. No verão Ipanema era uma festa, não era preciso viajar até o Litoral. Eu adorava pegar os bondes, ir até o fim da linha e voltar para conhecer os bairros. A gente caminhava pelo centro todo com prazer. O pior é que a situação não precisava chegar onde chegou. Uma pena.
Hoje o site do Prévidi publica a minha crônica e acrescenta fotos da orla do Guaíba, imunda. Confere em http://previdi.blogspot.com/

linuxman disse...

Eu me lembro de ir com meus tios navegar de caíque por Pedra Redonda e Ipanema, costeando o Morro do Sabiá, muitas vezes sózinho; também pescar e comer os peixes do Guaíba. Nadávamos felizes da vida no lago, sem saber que era a última geração que viria a fazer isso. Triste Guaíba, triste Porto Alegre.